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Diógenes de Arruda Câmara


Diógenes de Arruda Câmara foi um político de esquerda, um comunista
histórico. Tio Diógenes, irmão de minha mãe, foi um dos heróis da resistência à
ditadura militar de 64.


Era secretário de estado de Miguel Arraes quando este foi derrubado
pelo golpe de 64, conspiração da qual fez parte um outro tio, Alfredo de Arruda
Câmara.





Diógenes entrou cedo para a política quando estudava engenharia na
Bahia. Militou no partido comunista por 45 anos até morrer. Foi membro do
comitê central e figura essencial do partido. Conheceu Stalin e outros chefes
de estado, viajou pelo mundo, participou intensamente da política nacional e
internacional. Foi eleito deputado federal por São Paulo, atuou no Congresso de
47 a 52. Jorge Amado lhe dedicou o livro
Subterrâneos da Liberdade.





Durante o período Estado Novo ele foi preso algumas vezes. Após uma
dessas prisões ele decidiu ir para a fazenda do pai para recuperar a saúde,
descansar um pouco e avisou meu avô por telegrama do dia em que chegaria. Meu avô
sabia que o filho tinha sido preso e torturado. No dia da chegada de tio
Diógenes meu avô ao invés de ir busca-lo na estação de trem mandou um capataz
da fazenda com uma pergunta. Havia se comportado com dignidade na prisão? Se
não poderia voltar da estação mesmo.





Tive o privilégio de conviver com Diógenes intensamente por mais de
dois meses. Quando aconteceu o golpe de 64 o partido estava muito
desestruturado. Diógenes se escondeu no Mosteiro de São Bento, de Olinda, levado pelo cunhado Dom Mariano. Os
beneditinos o protegeram.


Um belo dia toca a campainha lá de casa na Lagoa Rodrigo de Freitas no
Rio. Fui atender, abri a porta e vi na minha frente dois monges, dois homens em
hábitos beneditinos. Um deles era tio Diógenes. Demorei para reconhece-lo, ele
estava sem o tradicional e farto bigode.


Ele havia escapado do mosteiro de Olinda e viajado incógnito de ônibus acompanhado
por um monge beneditino de verdade, com a identidade de meu tio Francisco Ferro,
cuja foto no documento, sem bigode, se parecia muito com ele.





Tio Diógenes ficou escondido em nossa casa, hospedado em meu quarto.


Ele não saia de casa para absolutamente nada como é natural, procurado
pelo Exército. Nesta época contamos com o apoio logístico do pai de meu amigo
Guilherme, o teatrólogo Alfredo Dias Gomes, autor do Pagador de Promessas, de
novelas como o Bem Amado, marido de Janete Clair, a criadora da novela televisiva
brasileira.





Quando ficou perigoso para tio Diógenes continuar em nossa casa, ele
passou algum tempo no apartamento de Copacabana do artista plástico Chlau Deveza,
pai de meu amigo Michael. Depois disso o partido cuidou dele e ele desapareceu.


Durante os meses que dividimos meu quarto convivi intensamente com ele.
Ele lia meus escritos, minhas poesias, dizia que gostava, me indicava leituras,
comentávamos livros, olhávamos álbuns de arte, líamos jornais, discutíamos a situação política, discutíamos sobre tudo.
Cultíssimo ele contribuiu muito para minha formação cultural.





Tio Diógenes terminou sendo preso. Durante mais de dois anos ele foi
barbaramente torturado, sem nunca delatar. Quebram-lhe todos os dedos, teve os ouvidos
inflamados, costelas quebradas, um rim afetado, ligamentos da perna rompidos,
meniscos fraturados, tuberculose nos dois pulmões, perdeu quase totalmente a visão e finalmente ataques cardíacos.


Houve uma sessão de torturas onde ele recebeu tantos choques elétricos
no pau-de-arara que seu corpo girou 360 graus em volta do eixo da tortura. Uma
dessas sessões se prolongou durante tantas horas que os torturadores cansados precisaram
se revezar. Tio Diógenes mantinha-se firme e calado. Finalmente exausto um dos
torturadores estendeu-lhe a mão e disse:


- Quero apertar a mão do maior homem de verdade que já conheci. Tio
Diógenes cuspiu na cara dele. O cara sumiu, nunca mais foi visto nos
calabouços.





Depois de solto ele foi viver exilado no Chile e na França. Foi hóspede
e recebido como chefe de estado por Mao-Tsé-Tung. Diógenes era um homem culto,
alegre, com uma imensa vontade e alegria de viver. Fascinado pela beleza das
mulheres, por culinária, por poesia, por viagens. Tinha uma empatia enorme com
as pessoas, tinha sempre uma história divertida, inspiradora, fascinante para
contar. 
Tio Diógenes morreu como viveu. Morreu de alegria.





Poucos meses depois de voltar do exílio ao Brasil ele reencontrou o grande
amigo João Amazonas que também estava voltando do exílio. Tio Diógenes foi recebê-lo e
depois de abraça-lo no aeroporto de São Paulo seu coração enfraquecido pelas
torturas não resistiu.

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